terça-feira, 28 de junho de 2016

Poema 109 de Bruno Tolentino: truques inusitados num poema natural ou “a paz de um Céu tão fácil de perder”



Não permitas, Senhor, que a minha carne
se confunda outra vez e eu me atrapalhe
e caia como cartas de baralho
o castelo em que entrei para salvar-me.

Teresa castelã, valha o que valha
o meu fervor, o meu fragor de armas,
sustentai-me, rogai que eu não desarme,
que não se apague o fogo meu, de palha,

talvez, mas seja palha de fogueira.
Fogo de auto-da-fé, se necessário,
mas fogo irrevogável, se primeiro

hei de arder que entregar-me ao ilusório.
E se hei de merecer algum martírio
tanto mais duro quanto o assédio é sério.


É curioso -- apesar de não ser algo incomum nas obras de nosso autor, muito menos nesta -- o esquema de rimas apresentado neste soneto. A começar pelos tercetos -- analisando aqui do último verso ao primeiro --,“sério” rima com “ilusório” e com “necessário”, ou seja, a rima é entre vogais abertas(é, ó e á) seguidas, por sua vez, da combinação  de “Rs” vibrantes com terminações em “io”. Já com relação à “martírio”, a rima é com “primeiro” e “fogueira”. Entre as duas últimas a identidade é mais clara, mas comunicam com a anterior porque as tônicas caem na última sílaba poética.
O autor valeu-se aqui de uma variação das rimas toantes, cuja identidade sonora ocorre apenas nas vogais tônicas, não necessariamente na relação entre as mesmas vogais. Processo semelhante ocorre nos quartetos entre “desarme” e “armas”;  entre “salvar-me” e “carne”; e entre “baralho” e “atrapalhe”. No primeiro quarteto, porém, há um complicador: à primeira vista, “carne”, do primeiro verso, tem mais identidade sonora com “atrapalhe”, do verso seguinte, do que este com “baralho” que aparentemente acaba ficando sozinho na jogada.
Para compreender melhor esse esquema de rimas, baseei-me em dois fenômenos: o da já explicada identidade sonora entre as vogais tônicas, a qual atenua o valor da identidade sonora terminada em “e”(carne/atrapalhe) em favor da identidade em “a”(atrapalhe/baralho). O segundo  é   o  quarteto seguinte elucidar o primeiro, uma vez que a identidade entre “valha” e “palha” são mais óbvias. Essas, por sua vez, rimam com “baralho” e “atrapalhe” do quarteto anterior; assim como “desarme” e “armas” rimam com “salvar-me” e “carne”, também do anterior, formando o esquema abba/baab. Esse tipo de rima ou algo próximo, ao que parece, não era incomum na poesia medieval portuguesa, onde encontramos: “Per ribeira do alto/vi remar o barco,(...)// Vi remar o navio/U vai o meu amigo”, de Joan Zorro, ou ainda: “En os verdes prados/vi os verdes bravos,(...)//E con sabor delas/lavei as garcetas,”, de Pedro Meogo, ambos do século XIII.(The Oxford Book of Portuguese Verse, XIIth Century – XXth Century, OUP, 1962, p. 1 e 21 )
O comentário pode passar uma idéia falsa de complicação. Por outro lado,  é uma complicação que  se manifesta apenas na medida em que o leitor procura entender e explicar essa forma de rimar. Afinal -- eu que li esse poema repetidas vezes e no qual muitas vezes parei para apreciar-lhe a beleza, e com cujo sentimento que o anima sempre me emocionei e me identifiquei, que é o sentimento de viver na corda bamba, na qual  a possibilidade de errar e decepcionar é tão real quanto a própria morte, --, eu mesmo só prestei atenção ao esquema de rimas quando um amigo a quem o mostrei disse-me que achou estranha a presença de "sério", o qual encerra o poema, e que "não rima com nada". De resto, Tolentino é um autor que se utiliza de muitos truques -- cada qual mais surpreendente que o outro -- e que só se percebem como tais  quando se presta atenção a eles, e esse "não perceber" aumenta ainda mais o impacto no espírito de quem o lê.