domingo, 8 de junho de 2014

APÓS AS ASSOMADAS GNÁISSICAS

Movido pela leitura de Esquecidos & superestimados, de Rodrigo Gurgel, passei das "assomadas gnáissicas caprichosamente  cindidas em planos quase geométricos, à maneira de silhares; suportei "a descrição de 'cristais de feldspato', 'estratos de um talcoxisto', 'formações silurianas'..."(p. 50) e por aí vai, até chegar feliz da vida à página 23, onde me deparo com a passagem a que Gurgel – em subdivisão de seu ensaio "Combate interminável"   – chama de "Misterioso defunto"(p.49).
Esse caminho bastante  – perdoai-me o neologismo – "britado" é ao mesmo tempo uma promessa. Mais uma vez, Gurgel: "Nesse momento, quando suas vísceras começam a gemer, salva-o da escuridão o narrador, abraçado à tarefa de explicar as características climáticas, mudando subitamente a inflexão da voz para tornar-se íntimo, lírico..." (P.50). Este é o momento em que o crítico se concentra na figura do já aludido "misterioso defunto" e eu, por minha vez, me concentro numa passagem que chamaria de "luta pluvial":
Essa passagem também me remeteu a outra sobre a qual já escrevera em postagem anterior:

Uma pequena batida na vidraça, como se qualquer coisa a tivesse atingido, seguida de uma ampla queda leve como grãos de areia que deixassem tombar do alto de uma janela, em cima, e depois a queda estendendo-se, regulando-se, adotando um ritmo, tornando-se fluida, sonora, musical, inumerável, universal: a chuva.

Esse trecho,  que pertence a No caminho de Swann de Proust, em tradução exemplar de Mário Quintana, já comparei com a famosa passagem "O estouro da boiada", dos Sertões. Há outra, porém, com que se conforma:

Segundo numerosas testemunhas — as primeiras bátegas despenhadas da altura não atingem a terra. A meio  caminho se evaporam entre as camadas referventes que sobem, e volvem, repelidas, às nuvens, para, outra vez  condensando-se, precipitarem-se de novo e novamente refluírem; até tocarem o solo que a princípio não umedecem,  tornando ainda aos espaços com rapidez maior, numa vaporização quase como se houvessem caído sobre chapas incandescentes; para mais uma vez descerem, numa permuta rápida e contínua, até que se formem, afinal, os  primeiros fios de água derivando pelas pedras, as primeiras torrentes em despenhos pelas encostas, afluindo em  regatos já avolumados entre as quebradas, concentrando-se tumultuariamente em ribeirões correntosos; adensando- se, estes, em rios barrentos traçados ao acaso, à feição dos declives, em cujas correntezas passam velozmente os  esgalhos das árvores arrancadas, rolando todos e arrebentando na mesma onda, no mesmo caos de águas revoltas e  escuras... 

São duas passagens que se desenvolvem segundo estrutura semelhante – exceto pela posição do sujeito –, seguindo a mesma gradação de períodos longos, ainda que o euclidiano seja, pela natureza mesma do evento, bem mais longo. A diferença limita-se praticamente ao desenvolvimento mais breve do texto proustiano. Apenas um trecho parentético separa "pequena batida na vidraça" de "uma ampla queda leve como grãos de areia", ou por outra, de uma gota de várias outras gotas. O fenômeno pluvial, certo devido ao amolecimento do clima europeu, não demora para ganhar corpo. A chuva euclidiana, por sua vez, é menos uma chuva que um ato de insistência, de luta renhida. Após um sumário, que constitui o período de abertura, vem outro introduzido por uma locução adverbial "A meio caminho", no qual o fenômeno quer se manifestar, mas só logra acontecer a partir da quinta linha e concluindo-se, após muitas idas e voltas, apenas na nona. E tamanho esforço resulta numa espécie de desafio à chuva nostálgica parisiense e apresenta assim um curioso paralelismo, em que uma chuva "tornando-se fluida, sonora, musical, inumerável, universal" tivesse de competir em grande desvantagem com "concentrando-se tumultuariamente em ribeirões correntosos; adensando- se, estes, em rios barrentos traçados ao acaso, à feição dos declives, em cujas correntezas passam velozmente os  esgalhos das árvores arrancadas, rolando todos e arrebentando na mesma onda, no mesmo caos de águas revoltas e  escuras..."