terça-feira, 3 de julho de 2012

FAUSTO DE FERNANDO PESSOA, TRAGÉDIA SUBJECTIVA, ACTO IIII




Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci para ti antes de haver o mundo.
Não há coisa mais feliz ou hora alegre
que eu tenha tido pela vida fora,
que não o fosse porque te previa,
porque dormias nela tu futuro,
e com essas alegrias e esse prazer
eu viria depois a amar-te. Quando,
criança, eu, se brincava a ter marido,
me faltava crescer e o não sentia,
o que me satisfazia eras já tu,
e eu soube-o só depois, quando te vi,
e tive para mim melhor sentido,
e o meu passado foi como uma estrada
iluminada pela frente, quando
o carro com lanternas vira a curva
do caminho e já a noite é toda humana.

Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo
de ti, quando m’o digas com a alma.
Em palavras estranhas que m’o fales,
eu compreenderei só porque te amo.
Se o teu segredo é triste, eu saberei
chorar contigo até que o esqueças todo.
Se o não podes dizer, dize que me amas,
e eu sentirei sem qu’rer o teu segredo.
Quando eu era pequena, sinto que eu
amava-te já hoje, mas de longe,
como as coisas se podem ver de longe,
e ser-se feliz só por se pensar
em chegar onde ainda se não chega.

Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!


Um trecho tirado ao poema dramático Fausto de Fernando Pessoa baseado, por sua vez, na peça homônima de Goethe, que também é uma das personagens. Quem tem as poesias completas pela Aguilar, conhece-o certamente, porém, numa versão demasiadamente fragmentada. Se não me engana, são menos de quinze páginas. Recomendo, pois, a chamada primeira edição integral, com texto fixado por Tereza Sobral Cunha(Nova Fronteira, 1991), e que tem a grande vantagem de manter a ortografia de Portugal, fora as notas riquíssimas com variantes, além de planos de edição de outras obras. E são 179 páginas de poesia contra as menos de 15 da edição anterior, e contando texto introdutório mais os apêndices são 222 páginas.
Esses versos são uma declaração de Maria a Fausto, num parêntese de doce recordação em meio a um discurso pelo qual se percebe que não está segura do amor que diz sentir por ela e que lhe parece mais um amor ao próprio conceito de amar que a ela mesma(“Mas tu dizes palavras com sentido,/ e esqueces-te de mim”). Essa preocupação, aliás, se justifica já que a relação de Fausto com a realidade é de igual natureza, como fica bem claro no poema introdutório:

Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria
são outra coisa que a noite e o vento –
sombras de vida e de pensamento.

Tudo que vemos é outra cousa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
é o eco de outra maré que está
onde é real o mundo que há.

Tudo que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento
são sombras de mãos cujos gestos são
a ilusão mãe desta ilusão.

Por fim, há determinados efeitos poéticos que só o português lusitano é capaz de alcançar, como a belamente cândida “Quando,/ criança, eu, se brincava a ter marido” ou a saborosa síntese sintática bem típica de Pessoa: “porque dormias nela tu futuro”.

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