terça-feira, 16 de agosto de 2011

A ARTE DE NÃO CONVERSAR: BREVES ANOTAÇÕES SOBRE "UM HOMEM SEM QUALIDADES" DE ROBERT MUSIL


 – Vamos conversar!
– Não quero conversar, tenho nojo de você! – respondeu Clarisse, de repente bem lúcida, dona de seus meios de expressão e usando-os com tamanha eficácia como se uma pesada travessa de porcelana caísse exatamente entre os pés dela e de Walter. Este deu um passo atrás e encarou-a surpreendido.


O trecho acima, do romance de Robert Musil, reproduz o único momento em que alguém resolveu ser franco com o outro, na pequena Kakânia. Walter, preocupado com a resolução de Clarisse de ir assistir a uma manifestação política, tenta convencê-la a não sair, e diante da insistência ela lhe dá uma das respostas mais brutais já registradas na literatura. Bem, dizer ter nojo do outro certamente não tem tanto impacto assim, literariamente falando. Então, é preciso que isso seja ilustrado de alguma forma, como é o caso da referência à “lucidez” de quem diz, ao seu domínio “dos meios de expressão”, à “eficácia” com que esses meios são usados, e em seguida usa-se uma imagem que dê mais força à expressão ofensiva, numa gradação dramática... O curioso é não ter havido recurso a imagens eloqüentes, raios, trovões, terremotos ou algo semelhante. Pelo contrário, a brutalidade discursiva e o impacto disso não apenas são ilustrados como são intensificados a ultima potência pela imagem da queda de um simples utensílio doméstico (uma pesada travessa de porcelana), cujo efeito dramático é chocante.

Algo análogo à intensificação das emoções por meio de uma simples imagem doméstica é que, após anos de não discussão sobre a crise do casamento, a explosão dos sentimentos, o desabafo humilhante e violento acontecem por um motivo banal...

Agora, o que de fato me chamou atenção foi um dos aspectos da estratégia narrativa: as ações e o que dizem as personagens nunca refletem aquilo que realmente pensam, nunca refletem sua real intenção. Vamos aos exemplos: os já citados Walter e Clarisse, pianistas, vivem uma crise no casamento e ambos se realizam sensualmente apenas quando tocam piano juntos. A única que coisa que fazem juntos e com prazer é isto: tocar piano, nunca conversam de fato, não tratam de seus problemas reais. Há uma cena que é descrita com certo humor, em que Hulrich(que é a personagem título) visita-os e os vê tocando um piano com tal intensidade que o ambiente vibra, os quadros nas paredes tremem e o visitante se sente meio constrangido como se tivesse aparecido numa hora inconveniente.

Outro exemplo: a organizadora da Ação Paralela, Diótima, e o empresário judeu Arnheim vêem-se atraídos um pelo outro. São as únicas personagens que chegam perto daquilo que se chama conversar, mas quando um declara sua paixão pelo outro, Arnheim decide que o amor entre eles se realiza nas idéias nobres, na beleza dos seus sentimentos e com o tempo a relação esfria.

A relação incestuosa entre os irmãos, que só acontece na parte final do livro, é o auge dessa falta de articulação daquilo que se diz com aquilo que de fato se pensa. Há uma cena em que ambos passeiam pelo bosque, e quanto mais a tensão sexual se impõe, mais eles conversam sobre assuntos totalmente alheios, como filosofia. Às vezes, tem-se a impressão de que o diálogo se opera no puro automatismo, como se não soubessem o que estão dizendo nem para onde estão indo ou o que estão fazendo, como se estivessem falando durante o sono. Com o tempo, acabam se envolvendo de fato, mas depois, ao invés de conversar sobre o que aconteceu, conversam sobre... a natureza do amor.