sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O Proust é nosso


Un petit coup au carreau, comme si quelque chose l'avait heurté, suivi d'une ample chute légère comme de grains de sable qu'on eût laissé tomber d'une fenêtre au−dessus, puis la chute s'étendant, se réglant, adoptant un rythme, devenant fluide, sonore, musicale, innombrable, universelle: c'était la pluie.

“Uma pequena batida na vidraça, como se qualquer coisa a tivesse atingido, seguida de uma ampla queda leve como grãos de areia que deixassem tombar do alto de uma janela, em cima, e depois a queda estendendo-se, regulando-se, adotando um ritmo, tornando-se fluida, sonora, musical, inumerável, universal: a chuva.”

Estou no meio do caminho do primeiro volume de Em busca do tempo perdido (No caminho de Swann) de Proust, com a tradução modelo de Mário Quintana. A realização desse trabalho é de tal ordem que a impressão é que ao fazê-lo Quintana acabou por escrever o livro da sua vida, o livro que sempre sonhou escrever, e assim não apenas transpôs para o vernáculo um dos maiores romances franceses como conseguiu realizar, por extensão, e graças à engenhosidade e dedicação tradutória, um dos melhores romances nacionais.
Em tempo, à posição de “a chuva” no final do parágrafo aplica-se a aguda observação que Merquior fez da posição  de “o vaqueiro” no famoso trecho de Os sertões(“O estouro da boiada”), daquilo que ele chamou de a posição expressiva, a qual é manifesta pela  “câmera” que “só focaliza em close depois de um travelling arrebatador (enristado o ferrão, rédeas soltas, soltos os estribos, estirado sobre o lombilho, preso às crinas do cavalo - o vaqueiro!)”. Tal recurso é também explorado na poesia, como na impressionante antropomorfização de uma cachoeira em Ou ela ou eu de Érico Nogueira, seguindo o wildeano “nature imitates art”, ou por outra, a natureza que imita a imaginação:

..........................................e olhava, longe,
com chapéu de araucária, fumando neblina,
queda d’água fazendo de barba, o Barão

De volta a Proust, o trecho em questão reproduz com muita competência o efeito acústico do original, da chuva que é percebida por quem se encontra dentro de uma casa, primeiro as pancadas isoladas às quais se juntam outras até formar, por fim, um coro aconchegante aos ouvidos do jovem Marcel e, também, aos do próprio leitor. E todo o processo de formação desse coro é perfeitamente ilustrado pelas seqüências de períodos que aos poucos vão se desfazendo para se desdobrar numa fileira de adjetivos, cada adjetivo é uma gota de chuva, que se junta uma à outra, ou o primeiro adjetivo intensifica o anterior resultando numa chuva plena, acelerando assim o texto, tornando coro perceptível.  Quanto à  funcionalidade dessa passagem, explica-se pelo bom senso de usar do recurso à tradução, dir-se-ia, literal, sem as irresistíveis “licenças”, e por isso mesmo, no presente caso, bastante eloqüente, na qual se mantém a mesma ordem sintática (exceto pela mudança sutil da posição pronominal que em português é posposta, p. ex. “s'étendant” por “estendendo-se”, e pelo encerramento sintético “a chuva” em vez do analítico “c'était la pluie”), e ainda assim fazê-la soar familiar, bem integrada à ordem natural do nosso idioma.

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