domingo, 2 de janeiro de 2011

Os amadores, de Pedro Sette-Câmara, e um parênteses machadiano



Numa palestra sobre As almas que se quebram no chão(parte 1 e parte 2) tive a oportunidade de apresentar o romance Eu vos consagro a minha língua, de José Carlos Zamboni, e a peça Os amadores, de Pedro Sette-Câmara. Nessa peça, o espírito romântico, que também habita os dois romances, é dissecado e assim revelada sua verdadeira natureza. Ademais, pareceu-me  curioso uma peça com dicção de comédia para adolescentes, com algo das novelas de Manoel Carlos(I-love-you-Rio-com-bossa-nova-como-trilha-sonora), e também do teatro grego com a curiosa “Voz Elegante” fazendo as vezes do coro, mais explicitar que atenuar a influência de Memórias do subsolo, de Dostoiévski. Só que agora, ocorre-me apontar a familiaridade com a visão também sem atenuantes dos romances Machadianos, incluindo os dois primeiros da fase romântica, A ressurreição(1872) e a Mão e a Luva(1874). Diria ainda mais desses que os da segunda fase.
Os dois primeiros ao menos, principalmente o de estréia, não me parecem propriamente românticos. (Ia-iá Garcia e Helena – os dois últimos dessa fase –  correspondem mais, é verdade, à característica romântica propriamente dita, com direito às revelações de revelações de revelações... até que finalmente se descobre que a mocinha pobre não era uma vadia e assim finalmente casa-se com o mocinho rico de bom coração.) Pelo contrário, os elementos da segunda fase e a anatomia do espírito humano já estão bem presentes nos dois primeiros, os quais – coincidência? – são justamente os que apresentam a narrativa mais linear, mais característica da fase seguinte. Observe-se que, com toda sua inventividade, Memórias póstumas de Brás Cubas não apresenta tanta peripécia narrativa que se percebe em Helena, muito menos os que o seguem.
N’A ressurreição e A mão e a luva, a técnica romântica propriamente dita, com todos os seus sentimentalismos, parece ser usada mais para evidenciar a tibieza romântica, a que faz uso de motivos nobres para não conseguir o que se quer:

Em matéria de amor, deixa-se o homem de espírito embalar por estranhas ilusões. As mulheres são para ele entes de mais elevada natureza que a sua, ou pelo menos ele empresta-lhes as próprias idéias, supõe-lhes um coração como o seu, imagina-as capazes, como ele, de generosidade, nobreza e grandeza. Imagina que para agradar-lhes é preciso ter qualidades acima do vulgar. Naturalmente tímido, exagera mais ao pé delas a sua insuficiência: o sentimento que lhe falta muito, torna-o desconfiado, indeciso, atormentado. Respeitoso até à timidez, não ousa exprimir o seu amor em palavras; exala-o por meio de uma não interrompida série  de meigos cuidados, ternos respeitos e atenções  delicadas. Como nada quer à custa de uma indignidade, não se conserva continuamente ao pé daquela que ama, não a persegue, não a fadiga com a sua presença. Para interessá-la em suas mágoas, não toma ares sombrios e tristes; pelo contrário, esforça-se por ser sempre bom, afetuoso e alegre junto dela. Quando se retira da sua presença, é que mostra o que sofre, e derrama as suas lágrimas em segredo.
O tolo, porém, não tem desses escrúpulos. A intrépida opinião que ele tem de si próprio, o reveste de sangue frio e segurança.
Satisfeito de si, nada lhe paralisa a audácia.

É preciso ser muito romântico para acreditar que Machado de Assis esteja elogiando tal “homem de espírito” apenas porque o trecho em questão encontra-se numa obra da fase romântica. Esse é um trecho do terceiro capítulo do livro de estréia, A ressurreição. Vejamos agora como se comunica com este trecho de Os Amadores:


VOZ ELEGANTE: Você ainda não percebeu que seus amigos consideravam você
alucinado e imaturo?
VÁLTER: Eu estava preparado para isso. No fundo, no fundo... Eu sabia que eles não chegariam a entender.
VOZ ELEGANTE: Você se sente muito superior.
VÁLTER: Eu sou um injustiçado.
VOZ ELEGANTE: E você quer um bálsamo ou quer justiça?
VÁLTER: Quero que o mundo pare para se admirar com Ícaro se afogando. Quero
que reconheçam o sentimento superior e mais nobre quando ele aparece. Quero que uma mulher que é uma deusa saiba disso e reconheça quem percebeu isso nela.
VOZ ELEGANTE: Justiça, então, é você, as suas ambições serem justificadas. Justiça é o mundo olhar para o sofrimento da sua alma.
VÁLTER: E não é?
VOZ ELEGANTE: Você está morto, Válter. Para sempre. Como eu. Você não sente que as chamas vão ficando mais fortes?


Eis como os dois trechos, escritos por duas sensibilidades afastadas uma da outra por mais de cem anos, mas unidas pela percepção cirúrgica do real, revelam o que se esconde por trás dos  sonhos e ambições que não encontram sua tradução em realizações concretas(uma alma ardente e frouxa, nascida para desejar, não para vencer, uma espécie de condor, capaz de fitar o sol, mas sem asas para voar até lá. In A mão e a luva), mas que, ironicamente, não impede o sonhador de buscar um reconhecimento justamente por aquilo que não fez, bastando-lhe as boas intenções a se traduzirem numa sensibilidade para perceber o “belo e o sublime”, sensibilidade essa que – segundo o próprio sonhador -   deveria distingui-lo dos mortais, do vulgo, ou, usando de uma imagem machadiana, pôr o “homem de espírito” acima do “tolo audacioso”.

P. S.
Leiam também um ótimo texto de Érico Nogueira sobre a peça.


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