sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

"Canção de Níobe", de Silvério Duque: Mater dolorosa

 
Se morta, sim, eu me fizesse, adormecendo
sobre os braços da terra amiga, pouparia
meu coração desesperado e me faria
como a doce romã que, agora, florescendo,

amadurece alegre, e, enfim, apodrecendo,
reduz sua doçura à lembrança de, um dia,
ter sido, entre outras tantas, a que, de alegria,
povoou o chão com belas sementes; mas vendo

minha função de mãe minorada a um momento
de mais profunda angústia, assim, eu permaneço,
petrificada, imóvel pelo sofrimento,

não recordando mais da luz do sol nascente
e nem sentindo a forma fria onde me esqueço:
esta fonte a fluir sua dor, eternamente...


Níobe
por Ovídio

(...)Queda-se só,
entre os cadáveres dos filhos, e os das filhas, e o do marido.
Pela desgraça fica hirta. A brisa já nem um só cabelo move,
o rosto empalidece, sem pinga de sangue, os olhos param,
imóveis, na desolada face: nada está vivo na sua figura.
Até a própria língua se congela no interior do palato
endurecido, e as veias desistem de poder palpitar.
E já nem o pescoço se flecte, nem os braços se movem,
nem os pés logram andar: até o interior das vísceras é pedra.
Porém ela chora. E, apanhada pelo turbilhão de um vendaval,
é levada para sua terra. Ali, fixada no cimo de um monte,
desfaz-se a chorar, e ainda hoje do mármore jorram lágrimas.

Ovídio, Metamorfoses, livro VI, VV. 301-312, trad. Paulo Farmhouse Alberto


Este é o momento em que Níobe - após ter disputado com Latona a primazia das oferendas - vê seus sete filhos, seu maior orgulho, morrendo um a um alvejados pelas setas de Apolo e de Diana, filhos da própria Latona. Alguém submerso numa dor tão imensurável que a única imagem possível é de uma pedra que chora, é uma metáfora tão poderosa quanto tocante.
O soneto - do livro Ciranda de sombras a ser lançado proximamente - que antecede ao trecho de Ovídio foi resultado de um desafio que fiz a seu autor e meu amigo Silvério Duque. Após ouvi-lo narrar esse mito, fiquei tão impressionado com a precisão com que o fez que não vi outra saída senão pedir-lhe que escrevesse um poema sobre o assunto.
Afinal, da mesma forma que só a mutação em pedra-fonte poderia dizer a dor da personagem, a poesia seria a única forma de dizer essa dor.
Eis que poucos dias depois, o autor me aparece com esse alexandrino em que dá voz à própria vítima do infortúnio e que encerra com um verso extraído ao fragmento da poetisa Safo de Lesbos.
Salvo engano, a única parte do poema que chegou ao nosso conhecimento.
Reparem a mobilidade das cesuras no primeiro quarteto que aos poucos cede espaço à sua imobilidade a partir do quarteto seguinte, sempre nas sextas sílabas, como se estivesse a ilustrar assim o processo de petrificação.
Além disso,  o estilo contido que diz de algum modo esse estado pétreo da narradora, e a distribuição imitativa da rimas. Ou seja, os verbos “florescer” e “apodrecer” encerram, cada um,  respectivamente, o quarto e o quinto versos, seguindo assim uma seqüência lógica.



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