sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Um poema para o Natal de Bruno Tolentino

Em frontispício


‘Eu vos compensarei pelos anos que
  o gafanhoto comeu...’  ( Joel, 2:25)

O Senhor prometera nos compensar os anos
que a legião dos gafanhotos devorara,
meu coração, mas a promessa era tão rara
que achei mais natural vê-Lo mudar de planos

que afinal ocupar-Se de assuntos tão mundanos.
Assombra-me, portanto, ver uma luz tão clara
fecundar-me as cantigas, coração meu – repara
como crescem espigas entre escombros humanos...

Naturalmente, quem sou eu para que Deus
cumprisse em minha vida promessa tão perfeita,
e no entanto ei-Lo arando, abrindo os olhos meus,

fazendo-os ver que, no trigal em que se deita
a luz dourada e musical, se algo perdeu-se                 
foi como o grão – entre a seara e a colheita.


Esse prólogo à Imitação do amanhecer(2006), de Bruno Tolentino, é a minha saudação de Natal. É um prólogo a uma narrativa. Ao invés, porém, de ser uma invocação às musas, um pedido para que conceda ao poeta “engenho e arte” é algo como uma oração, um agradecimento. Mas que agradecimento!  Como um bom agradecimento, é feito em voz baixa – mas não sussurrado –, meditando em cada palavra, com o ritmo do pensamento que encontra sua harmonia após momentos de grandes provações.  
Devo também observar que os outros sonetos que compõem a Imitação do amanhecer têm mais ou menos essa sobriedade do prólogo. Diria mais, é uma obra que consegue uma curiosa harmonia entre a sobriedade da linguagem e a eloqüência da beleza(Cantaremos assim, como o eco na arcada/de um violoncelo ou de uma escada, a dor de andar/como os cacos avulsos, os lúcidos amantes/da coisa moritura(III-151) Andamos todos nus ante o exercício ingrato/ de animar um vazio, o pêssego no prato/a natureza morta...(III-152)). Voltando ao prólogo, versos como “repara/ como crescem espigas entre escombros humanos...”, e mais adiante, e no entanto ei-Lo arando, abrindo os olhos meus,” desenvolvem-se num belíssimo efeito de câmera lenta, que flagra as sutilezas de alguns movimentos imperceptíveis a olho nu.
Tal agradecimento ganha maior significado quando percebemos que esse se deu após a morte ter acompanhado a personagem em todos os seus passos, após ter se mostrado mais clara nos momentos da mais intensa alegria; após essa personagem ter perdido seu amante e, numa tentativa desesperada de perpetuar um momento de felicidade, mandar embalsamar seu corpo para carregá-lo mundo a fora; após ter percebido que o belo trabalho de embalsamento era a um só tempo encantador e delirante, como o era a natureza da relação entre eles, ao qual o próprio narrador chamou de um amor de duas pessoas unidas “como as estátuas ao seu belo imobilismo” (II-102).
Por fim, após a personagem testemunhar uma série de eventos naturais que de tão exuberantes(uma rosa de areia/ que troca de lugar para fingir que dura(I-4) Como os filhos da fênix, o bando[de flamingos] vive agora/ de queimar-se, fogueiras subindo espaço a fora.(III-120)) desmentiam e humilhavam suas fantasias, seu mundo inventado, ele simplesmente... agradece. Sofre, e muito, sua sucessão de perdas. Mas, após essa fileira de desastres percebe que seus olhos finalmente se abriram para o fato de que “uma só coisa é necessária” (Lc. 10, 42), a que o narrador chama de “a Perfeita Presença” que “não é uma personagem ou uma noção, é um quisto/ uma intrusão carnal por sob o imaginário/ de cada ocidental.”(II-63). Talvez seja precipitado dizer que essa personagem tenha passado por um processo de conversão. Não é tão claramente verificável. Não estamos propriamente diante de uma obra pia. Por outro lado, houve, sim, ao menos alguma ordem de revelação ao final da qual acaba por perceber que todas essas perdas – diante do impacto dessa revelação –  nada mais foram (como ele mesmo disse) que um “grão – entre a seara e a colheita”.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

(OS DOZE PROFETAS), de Érico Nogueira

O tempo vos comeu as pontas
dos dedos, narizes e dos pés;
à medida que esculpia
vosso rosto e corpo desconformes
o autor esculpia o seu destino
no vosso e no tempo redobrado.

Há muitas armadilhas
no labirinto de dobras e de espelhos,
no labirinto do tempo; às vezes
nos ilude a semelhança; oculta,
a rima é profecia às vezes.


Este poema de Érico Nogueira com seus devidos comentários eu postara antes no mural do FACEBOOK. Graças à gentileza do poeta e de Adriana Invitti(Nem só do pão vive o homem, mas das palavras que vêm do Forno de Ensaio), agora tenho este blogue por tribuna e que leva o nome de uma seção à qual ainda na famosa rede social dei o nome de Antología personal, numa referência ao volume homônimo de Jorge Luís Borges. Aos poucos, resgatarei outros comentários e os postarei aqui de forma mais organizada.
 “Os doze profetas” é da terceira parte d’O livro de Scardanelli, subintitulada “Cadernos de exercícios”. Também é o terceiro e último da série “O espólio de Horácio”. Sobre esse livro de estréia tive a oportunidade de escrever um ensaio chamado O livro de Scardanelli:O esquadro da loucura, publicado no blogue Ars poética, do autor. Além desse ensaio, há outro bastante elucidativo escrito por Carlos Felipe Moisés e que figura no posfácio, além de outro muito instigante escrito por Ricardo Domeneck, ainda antes do seu lançamento.
Posso dizer com tranqüilidade que gosto de todos os poemas do Scardanelli. (Com a mesma tranqüilidade digo que, depois de Bruno Tolentino, tanto esse como Dois constituem as melhores realizações poéticas da atualidade. Ide e lede.) Se por um lado gosto de todos, sempre há aqueles pelos quais tenho mais afeto:  “Os Doze Profetas” é um deles.
Desde que o li, nunca parei de pensar nele e na delicadeza que o destaca dos demais. Tratar seriamente da morte confere essa delicadeza. É o que se vê, por exemplo, na primeira estrofe quando o artista faz revelar a própria mortalidade nas estátuas que cria. Outros há também que muito me impressionaram e sobre os quais falarei num momento oportuno. É um poema em alto relevo, concreto porque diz, e com a qualidade da melhor estatuária. Dessa qualidade também participam os versos da segunda parte, “La méditation”(Como é possível que a beleza grega/ da curva dos músculos, do tônus,/ possa se contorcer e ser um soco,/ pose para o desespero?). Essa qualidade estatuesca também se materializa no enjambement(o tempo vos comeu as pontas/dos dedos), que é uma amostra do uso funcional desse recurso: a plena coincidência entre o encerramento(corte)do verso e a aludida ação do tempo. Isso, sim, é uma ars poetica.